Dicas de como escrever, divulgação de oficinas de escrita criativa e processos pessoais parecem ser temas centrais das publicações por aqui. Em tempos tão digitais, essa oferta é até curiosa. Escrever texto noticioso ainda é importante. Se com ele já está difícil, imagine sem. Nesse aqui, abrindo o Carnaval, me refiro aos modelos mais ordinários e pretensiosos.
Sendo assim, prometo não ser romântico – porque parece uma tendência. “Ah, escrever me salva”, “escrever liberta meus demônios”; “se não escrever eu morro”, dizem. Mentira. Nada disso é verdade. Todos nós conseguimos elaborar nossos traumas e conquistas sem escrever uma vírgula. Minhas tias todas conseguiram.
Concordo com a Marilene Felinto quando diz que escrever dá a ela certa “sensação de inutilidade”, concluindo: “Admiro muito quem não escreve.” Felinto é autora de livros como ‘As Mulheres de Tijucopapo’ e o mais recente ‘Mulher Feita e Outros Contos’.
Escrever me tira a paz, consome meus pensamentos, me faz suar como uma geladeira velha. Escrever não liberta meus demônios, ao contrário, convida todos para tomar café com biscoito. Não é tarefa simples reunir ideias e costurar com sentido. Escrever e ter que escrever me incomoda. Não se trata de dor, mas de uma ardência que começa antes mesmo do embate com as palavras. Veja que frase escrota!
Como se não bastasse, a escrita ainda é desleal. Não é confiável. Hoje ela diz, amanhã não diz nada. Dorme um diamante e acorda pedra de rim. Nem falo do processo infindável de edição que, mesmo publicado, reclama ajustes. Portanto, escrever é mesmo esse adicionar e subtrair, dividir e multiplicar. E eu odeio matemática! Por fim, meu texto nunca sai da forma como imaginei. Esse é um exemplo.
Continua mentindo quem diz depender da escrita para viver. Mesmo de forma simbólica, isso só soa cafona para mim? Li essa frase noutro dia: “Escrevo porque a vida não aplaca meus apetites e minha fome”. Graciliano Ramos nos ensinou o seguinte: “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.” Sejamos realistas.
Nos apegamos a escrita como se ela fosse o suprassumo dos domínios, o antídoto de todos os males.
Ensinar a escrever é outra atitude que divide meus questionamentos. Se for professor primário está justificado ou se o conhecimento for transferido igual bluetooth para o aluno. No fundo só fico pensando: quem quer aprender a escrever, meu Deus?
Se fosse oferecer uma dica de escrita, diria para investir numa CNH ou em uma viagem para o interior do país; lá se aprende de verdade. Já fez os dois? Então joga no Bicho. O escrito, de todo modo, precisa valer.
Tenho para mim que todas as fileiras de letras podem ser ditas numa conversa. Essa publicação poderia ser um zap – como já foi –, uma conversa despretensiosa com alguém, um pensamento descartado por outro. No processo de escrita só há prejuízos.
Escrever é isso. Muitos passarão incólumes a este esforço solitário ou darão mais valor àquele que domina, por exemplo, o design gráfico. Eu já fiz isso. “Ah, mas eu escrevo para organizar os pensamentos e me conectar com as pessoas”. Por favor, pare agora. A Wanderlea está mandando. Não venha com esse papo outra vez. Não tem conexão maior que uma mesa de bar.
Na solidão da escrita, somos como os cristãos com medo do inferno, mas com o desejo constante de ser merecedor do céu.
Então por que escrevo? Porque tenho tempo sobrando, porque quero incomodar, porque sou incoerente e contraditório. Escrevo porque tenho raiva, porque odeio algumas escolhas feitas por mim mesmo, porque não concordo com o estado das coisas, porque aprendi no ensino básico. Também escrevo porque, assim como muitos, acredito que a escrita tenha algum valor para os outros, mas me engano sabendo que não tem.
Os sintomas da escrita em mim partem dessas vulgaridades. “Alinhar adjetivos doces ou amargos” não esvazia nada que estava cheio, não me inspira a viver melhor, não mata fome alguma. Sendo sincero, desempenharia tranquilamente outra função menos intelectualizada e mais rentável. Por que escrevo então?
Dorothy Parker é quem conclui toda essa ambivalência usando outra.
“Eu odeio escrever, mas adoro ter escrito.”
No texto abaixo comento os bastidores dessa publicação que acabou de ler. ‘Pedra de rim’ é ‘Obra prima’.
Gostei muito do texto, embora ironicamente nesta semana tenha escrito justamente que "a escrita me salva". O clichê soa verdadeiro aos ouvidos, à mente, ao coração, ainda que seja difícil de explicar racionalmente.
Acredito que suas palavras trazem uma das várias facetas provocadas pela escrita, Matheus.
Talvez um lado mais raivoso, visceral, carnal. Eventualmente eu também me deparo com ele, rodeado por aquela vontade de nunca mais escrever uma só palavra que seja -- numa veia meio "essa merda não me leva a nada e ainda deposito um tempão de vida aqui".
Esse agrupamento de frases traz complexidades enormes. Quando esse ódio toma conta, é injusto a gente pensar nessa romantização, numa "missão" que parece estar por trás.
Mas, se a gente continua fazendo mesmo vivendo essa dualidade amor-ódio, creio que indica algum sentido, independentemente da possibilidade de passarmos uma vida inteira sem saber ao certo qual é.
Obrigado pelo texto, meu caro! <3
Na mesa do bar eu falo muito alto. Escrevendo posso editar e falar fofo rsrrssrrs