“Não é fácil não pensar em você. Não é fácil. É estranho não te contar meus planos, não te encontrar.” Essa é muito boa, né? Mas não citei a música da Marisa Monte para dizer sobre melancolia amorosa ou alguma partida de alguém deste plano. Passados 15 anos, acredito ter trocado de barbeiro. Foram trocentas histórias divididas, pontos de vistas discordados e muitos cortes errados que marcaram mais que os certos.
Independente do tipo de cabelo, um corte errado derruba a autoestima de qualquer pessoa – Ronaldo Nazário de 2002 é exceção. Pior ainda quando você explica como cortar e o barbeiro simplesmente faz o que dá na telha. Sem ressentimento, mas assim: isso aconteceu várias vezes.
Sabe aquele meme da aeromoça perguntando “café ou chá, senhora?” e aí a pessoa pede café e ela responde: “Errou. É chá.” Essa tirinha sempre me tira sinceras risadas e resume essa tragédia.
Claro que vou contar o motivo da mudança de profissional depois de tanto tempo, mas, para não parecer uma passagem de flagelo, também tiveram experiências legais. Ver de perto a mudança de endereço depois de anos fixado no mesmo lugar, que virou ponto de referência, é uma sensação legal por refletir a passagem do tempo. “É ali perto do salão/barbearia do fulano? Sei onde fica…”
Quando chegava para cortar o cabelo, uma ou duas vezes por mês, ele dizia o nome de um artista que nunca vi na vida, ‘Matheus Bobrique’, como ele pronunciava. Pesquisando agora, encontrei o ator norte-americano chamado Matthew Broderick. Na minha cabeça, Matheus Bobrique tinha feito uma novela tipo ‘Roque Santeiro’. Se for o mesmo, me equivoquei redondamente – foi meu mal.
Voltando a falar sobre o Brasil do Brasil.
Nordestino, já na casa dos 60 anos, ele trouxe para a cadeira várias lembranças saudosistas vividas na terra de origem. Teve uma muito marcante, mas não consigo lembrar os detalhes. Minha falta de memória já foi comentada em outro texto e um dia prometo falar mais dela. Se eu lembrar.
O que ficou para mim desse diálogo foi o nome super novelístico de uma vizinha meio sofrida. Cheguei a verbalizar que escreveria um conto e daria a bendita alcunha para um personagem. O primeiro nome misturava certa identidade regional e o sobrenome meio soft, quase blasé. Talvez tivesse um diminutivo, mas não lembro. Algo como Chiquinha Pauferro ou Mariinha Arthuzo. Vou ter que voltar lá para confirmar essa identidade.
Apesar do fim não anunciado, temos uma relação respeitosa, embora ele seja bolsonarista e eu do campo democrático. Obviamente não deixei de cortar meu cabelo por esse motivo. Mas era falar do desastre do governo Bolsonaro que os ânimos se animavam. Surgia na hora: e o Lula, aquele bandido? Nunca olhava criticamente para a incompetência do inelegível.
E eu ali debaixo correndo o risco de sair careca ou decepado.
Sair sem cabelo até é um problema, porque cortar expõe as entradas, mas o pesadelo maior tem a ver com navalha.
Em novembro saí com um trisco no pescoço e em dezembro com um talho atrás da orelha. Nesse segundo fui para casa com um tufo de papel higiênico contendo a pequena bica. Só um toque da lâmina já é sinônimo de sangueira.
O Edward Mão de Tesoura se desculpou, disse quase chorando não saber o que estava acontecendo, além de lembrar de ter cortado outra pessoa numa oportunidade recente. A passagem do tempo pode ser ingrata. Quer dizer, as habilidades aprendidas ao longo dos anos parecem estar entrando em conflito com o domínio físico. “Eu troquei de navalha e não estou tendo muita firmeza com essa nova”, disse ele enquanto encarava a culpada.
Imagina só, a primeira vez que fui atendido por ele tinha por volta de 15 anos. Faço 30 em setembro. O quanto de momentos dividimos e quanto de conselhos trocamos. É difícil se despedir assim. Quando me ausentei para fazer faculdade, minha vó sempre dizia que ele perguntava por mim.
Quando vinha de férias, passava por lá para dar um jeito na telha que, quase sempre, estava horrível. Ninguém cortava mais próximo do que eu queria como ele. Gosto de cortar sem parecer cortado. É essa a chatice.
E aí, essa semana estive em outro barbeiro menos ‘tradicional’. Ele foi rápido, quase acertou de primeira. O cara usou umas três máquinas diferentes, tesoura dentada e uma escovinha enquanto cortava. Por que quase acertou de primeira? Porque poderia ter cortado só um pouquinho mais. Está bem, eu tenho uma justificativa antes de você começar a virar o olho: quando corta pouco, duas semanas depois estou lá acertando outra vez. Se corta demais, passo um mês zoado.
Como brinde, saí sem nenhuma marca de navalha ou vermelhão, mas com um certo sentimento de trairagem. Foi como se a Cher trocasse o Bob Mackie pelo Oliver Rousteing. E olha que o Bob também erra feio às vezes.
Por pouco não tentei uma terceira vez, lembrando do quanto ir cortar o cabelo era uma rotina simbólica. “Se a navalha estivesse mais violenta agora?” pensei. Isso me deixou bloqueado. Duas vezes seguidas. Em ambas as situações não tinha correria, exceto a segunda quando ele estava inquieto com situações pessoais.
Quero acreditar que foram dias ruins e tive o azar de estar por lá. O tempo pode ser cruel com nós todos – se tivermos a sorte de gastá-lo. A amizade continua e minha orelha também.
Dei boas risadas com seu texto, Matheus. Eu não entraria no assunto de política com alguém armado rsrsrsrsts.
Tenho primo que diz ir ao barbeiro quando ele precisa reafirmar sua masculinidade, pq às vezes ele diz esquecer e a barbearia é o melhor lugar para isso 😅.
difícil arriscar a sorte com quem tem uma navalha em mãos…