Quando ganhei você, minha vida era tão diferente. Eu era rebelde, saía um dia e voltava em outro; fazia coisas erradas como boa parte da juventude dos anos oitenta. Tinha um corpo lindo, uma cabeça fraca e dezoito anos.
Em algum lugar impreciso da minha consciência, algo me diz que aquela época foi infeliz, muito por conta da rédea firme dos seus avós, daquela repetição de cidade pequena, daquela Ponte Branca rural.
Com a passagem dos dias, hoje sei que aquela fase, na verdade, foi a melhor da minha vida. Admito que talvez eu não quisesse te ter naquele momento, com aquela figura que era seu pai, nas circunstâncias que foi. Não estava pronta para assumir responsabilidades como essa.
Mas me acostumei com a ideia materializada nos meus braços. As coisas foram se ajustando e sua vó, como sempre, segurou a barra comigo até o final. Seu avô e seu pai, como bem sabe, não foram úteis nessa história. Na terapia você percebeu que os homens da tua infância só te negaram.
O relacionamento com seu pai aconteceu meio às pressas, naquela ansiedade juvenil. Por alguns instantes eu tive dúvida se ele era o responsável pela paternidade. Eu era livre e só tive essa fase para viver isso, você também sabe.
Daquele cruzamento sem sentido só ficou você. Nada mais. Você é resultado daquela bagunça e da melhor mulher que eu pude ser.
Por um tempo você ficou meio zangado comigo, eu entendo, mas não quis ser uma super-heroína ou a expressão máxima da perfeição. Era a minha primeira vez também, errei bastante, mas não é esse o ciclo?
Eu faria tudo diferente se tivesse tempo, principalmente ter escolhido um pai melhor para você, alguém que te instruísse sobre outras coisas que não conseguimos. Sua vó e eu lhe transferimos muitas coisas importantes, mas também um pouco das nossas fragilidades.
Pode não parecer, mas fui muito feliz quando você nasceu. No hospital sua avó brincava com o médico dizendo que você não era neto dela porque era feio. Hoje ela diz isso aos risos, não é? “Mas depois ficou lindo.” Ela nunca mais se desgrudou de ti. Eu sim.
Me casei com o terror de nossas vidas, logo tive seus irmãos, fui me encasulando nessa outra fase, me distanciando de você, da sua avó, das pessoas, da minha liberdade. Sinto muito por isso. Esse é um dos arrependimentos que não consegui reverter.
Nunca vou me perdoar pela forma como o terror de nossas vidas te tratou e menosprezou. Das vezes em que te agrediu verbal e fisicamente. Eu não deveria ter tolerado. Sei que muito daquele período reflete no que você é atualmente. A vida já está cobrando essa conta dele.
Logo depois que seu avô morreu, na casa onde vivi a infância e juventude, você encontrou uma carta escrita por mim, datando quase 20 anos atrás, não foi? Nunca achei que você leria. Lá eu pedia ajuda a ele para que pudesse intermediar nossos conflitos. Queria te proteger, meu filho, mas nunca tive respostas.
Do meu jeito, dentro das minhas possibilidades, eu tentei. Por muito tempo eu tentei muita coisa, mas era como escalar uma montanha sem fim.
Lembra do seu último aniversário comigo? Poderia ser daquele jeito todo final de semana. Todos ali vestiam uma máscara de forçar naturalidade: tanto você quanto sua vó, seus irmãos, o terror de nossas vidas. De novo eu me esforçava para te agradar. Você gostou? Eu preparei tudo que você gostava.
Depois os aniversários foram por mensagens, encontros rápidos. Se soubesse que o tempo estava acabando, priorizava mais esse filho fantástico que é e sempre foi. Nos seus anos de faculdade, acho que nos falamos umas duas vezes só.
Agora te ligo todo dia, mas a chamada não completa. Sei que chorou lembrando de mim no meu aniversário dia 26 de agosto e ainda pensa que em algum momento vou te ligar para dizer que estou bem. Você não me atende.
Chegou os 30 anos. Feliz aniversário. Imagino o quanto de conquistas você já queria ter. Tenha calma, faça o seu melhor e acredite no seu potencial. É o começo de muitas outras dificuldades da vida.
Eu deveria ter sido melhor e sei que depois que parti minha presença na sua memória ficou mais viva. Nos seus pensamentos sou menos culpada e me sinto mais compreendida. No fim das contas, veja só, você quem tem um olhar materno comigo.
Bem, agora vou descansar. Me desculpa a rapidez, é que não sei lidar contigo direito ainda. Você não precisa mais das minhas tentativas, das minhas incertezas, tampouco daquela mulher dividida em impulsividade e impotência.
Mas talvez precise do meu pão recheado com doce de leite, da minha risada estridente e da minha preferência escancarada por você, apesar de tudo. Parabéns, filho.
Assinado: sua mãe.
menino… você passa um tempo sumido e volta com um texto desses que acaba com a gente de tão bonito. 🥹
Você me emociona...